Famílias contam os desafios ao lado de crianças com o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade. Em novo livro, psicóloga norte-americana dá algumas dicas para os pais lidarem com esse diagnóstico e alerta: não é falta de educação.
“Uma vez cheguei do trabalho, me sentei com ele no sofá e perguntei como tinha sido o dia. Ele me olhou nos olhos e começou a chorar. Contou que não queria voltar para a escola, que as outras crianças riam dos desenhos dele. Implicavam porque ele só sabia rabiscar e não conseguia pintar. Como mãe, aquilo me doeu profundamente, mas precisei engolir o choro e garantir que estava fazendo um ótimo trabalho.” O relato é da auxiliar técnica Leticia Kaplum de Miranda, 25, mãe de Jhonatã, 6.
Episódios como esse não são raros no dia a dia de famílias que convivem com o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). No recém-lançado livro ADHD Explained: What Every Parent Needs to Know (“TDAH explicado: o que todo pai precisa saber”, em tradução livre), a psicóloga Nekeshia Hammond aborda os principais aspectos do transtorno na infância e oferece um passo a passo para os pais encararem os desafios que ele traz. De acordo com a especialista, o primeiro é, claro, entender o que está por trás dele e, na sequência, descobrir quais são as áreas em que a criança precisa melhorar, assim como seus pontos fortes. E, sempre, com a consciência de que não é culpa dela. “Uma pessoa com este transtorno não deveria ser criticada ou disciplinada por problemas de atenção e comportamento que, claramente, estão fora de seu controle”, afirma Nekeshia.
Leticia, por exemplo, desde aquele episódio, incentiva o filho Jhonatã a desenhar cada vez mais. Se não compreende algum dos desenhos do garoto, pede que ele explique – com o objetivo de mostrar ao filho que o trabalho dele importa, sim.
HIPERATIVOS OU SEM LIMITES?
Se evitar julgamentos não é fácil para os pais, imagine para quem observa de fora. “Que menino sem limites… Você precisa ser mais dura com ele!” A frase, constantemente ouvida por Leticia quando o filho se recusa a sentar-se à mesa, assiste à televisão de ponta-cabeça ou corre pela casa esbarrando nos familiares, não poderia fazer menos sentido. No entanto, embora taxado como “falta de educação” frequentemente, o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade tem razões biológicas.
Trata-se de uma disfunção no sistema de neurotransmissores que trocam informações entre os neurônios. E as alterações mais significativas se dão no córtex pré-frontal, região do cérebro responsável pela capacidade de prestar atenção, tomar decisões, planejar e inibir comportamentos. Não por acaso, os três sintomas principais são a desatenção, a impulsividade e a hiperatividade. Eles podem ocorrer de forma individual ou conjunta, razão pela qual nenhum caso é igual ao outro. De acordo com o neuropediatra Abram Topczewski, do Hospital Israelita Albert Einstein (SP) e autor do livro Hiperatividade e DDA: Como lidar? (Editora Casa do Psicólogo), a incidência é maior em meninos do que em meninas (sendo 3 para 1).
Apesar de muitas vezes notável em crianças menores, o diagnóstico costuma ser dado em torno dos 6 anos, quando há uma maturação do cérebro suficiente para diferenciar o que é comportamento comum da infância de um transtorno. E, para fazer um diagnóstico tão complexo assim, é necessária uma avaliação multidisciplinar, envolvendo pedagogo, psicólogo e neuropediatra. “Se a criança se mostra agitada demais antes dessa idade, principalmente quando há casos na família, pode ser classificada em um grupo de risco para o TDAH”, diz o neuropediatra Mauro Muszkat, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
MEDICAR OU NÃO?
Assim como o diagnóstico, o tratamento das crianças com essa característica também é complexo e variado. Pode focar em terapias para o desenvolvimento das emoções ou da linguagem, o que vai depender de cada criança. E, em alguns casos, ele também inclui o uso de medicamentos à base de metilfenidato (estimulante do sistema nervoso).
Por falar nisso, um estudo recente publicado na revista Pediatrics, da Academia Americana de Pediatria (EUA), mostrou que a exposição de crianças e adolescentes a medicamentos usados com frequência para tratar o TDAH aumentou em 64% entre 2000 e 2014. Por lá, os diagnósticos do transtorno também teriam dobrado em menos de dez anos – e, segundo pesquisa publicada no Jornal da Associação Médica Americana (Jama), atualmente correspondem a 10% das crianças norte-americanas. Não há números oficiais no Brasil, mas os especialistas estimam que também houve aumento de casos aqui. No entanto, segundo Iane Kestelman, presidente da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), o transtorno segue subtratado no país exatamente por recusa dos pais a tais medicamentos.
Com Enzo, que recebeu o diagnóstico aos 7 anos, foi assim. Na época, a mãe, a professora Milene Nurbegovic, 40, não imaginava que isso seria mais um motivo de julgamento. “Eu entendia a necessidade da medicação, ao contrário da minha família. Lutar contra uma corrente que culpa você por ‘drogar’ o seu filho é complicado”, relembra. No entanto, após seis meses de tratamento exclusivo com terapia e homeopatia, todos aceitaram a recomendação, ao notar que a dificuldade de socialização do filho se agravara.
“Imagine o motor de um carro potente que funciona como o de um popular. Ele tem o desempenho de uma máquina inferior porque está desregulado. Uma vez ajustado, terá um funcionamento proporcional ao seu potencial. É isso que acontece quando uma criança com TDAH é medicada, porque ela tem uma disfunção neurobiológica que precisa ser corrigida”, compara Topczewski. Em tratamento há cinco anos, Enzo já vem apresentando os primeiros resultados positivos, tanto na escola como nas relações sociais.
DA PORTA PARA DENTRO
O mérito da evolução de Enzo não foi exclusivamente do medicamento ou da terapia: o apoio da escola e da família foi fundamental no processo. Até o ano passado, o menino contava com a marcação cerrada da mãe, que estudava junto com ele para todas as provas, lia o conteúdo e fazia resumos sucintos, com o cuidado de usar canetas coloridas para evitar a dispersão. O mural com a rotina dele era conferido e atualizado semanalmente por Milene.
Ultimamente, ela está tentando dar mais autonomia ao filho. Já não coloca etiquetas em todos os pertences dele. Mas nem sempre dá certo. “Ele perdeu o livro que ganhou na volta às aulas no mês seguinte”, conta a mãe. “Antes, eu ficava mais impaciente. Hoje, o que me deixa triste de verdade é essa sensação de não conseguir ajudá-lo. Quando ele faz uma lição caprichada comigo e dá o seu melhor, por exemplo, mas esquece de entregar… É como se a gente nadasse, nadasse, e não chegasse na linha de chegada”, completa.
A presidente da ABDA, Iane, que tem dois filhos, já adultos, com o transtorno, afirma que não é raro a criança se tornar um fator de estresse para essas famílias. “Existem estudos dizendo que o índice de divórcio de pais com crianças com TDAH é maior, assim como o de ansiedade entre as mães. Imagine que todo mundo olha constantemente para o seu filho… Até mesmo a escola, quando chama os pais com o intuito de fazer um alerta ou ajudar, acaba transformando isso em queixa”, diz. Por isso, a recomendação é que os pais também façam algum tipo de acompanhamento psicológico, se possível, para enfrentar a situação.
NA SALA DE AULA
“A gente não está conseguindo lidar.” “Ele não fica sentado.” “Não para de falar e atrapalha os colegas.” O rótulo de bagunceiro da turma é quase inevitável, assim como o atraso no aprendizado. Não porque as crianças com TDAH sejam menos inteligentes – muitas têm o QI acima da média, aliás – mas por não se adequarem ao modelo clássico de ensino.
“A criança com hiperatividade e déficit de atenção muitas vezes precisa se sentar à frente, longe de estímulos, como portas e janelas. Um barulho, aparentemente inofensivo, já faz com que ela perca o conteúdo. Às vezes, é necessário combinar com o professor sinais para que ela ‘volte’ caso se distraia, sem ser necessário chamar a atenção na frente da classe”, explica a neuropsicóloga e psicopedagoga Cynthia Wood, que atende crianças com essa característica há quase duas décadas. Provas em uma sala separada, mais tempo para responder às perguntas, enunciados mais curtos e diretos também podem ser de grande ajuda nas temidas avaliações.
Embora muitas escolas garantam esse tipo de atendimento personalizado para os alunos com TDAH, essa não é a regra. A dona de casa Gislaine Rodrigues, 29, mãe de Anthony, 8, por exemplo, diz ter dificuldades em fazer com que a instituição onde o filho estuda trate o caso dele como de inclusão, mesmo após a apresentação de um laudo comprovando o transtorno. “Ele precisa de atividades curtas, que prendam a atenção. Quando isso não acontece, ele não para quieto. Por isso, sei que meu filho não é mais bem-vindo na escola e estou buscando outra instituição. Mas, no momento, até por conta desse diagnóstico, foi a única em que consegui vaga”, lamenta a mãe.
No Brasil, a ausência de uma legislação referente ao TDAH não é desculpa para que as escolas se recusem a oferecer um plano de ensino individualizado. “Apesar de não se tratar de um transtorno de aprendizado, ainda vemos índices de reprovação e evasão enormes entre esses alunos. Por isso, caso a escola se recuse a atender essa necessidade, é possível usar a jurisprudência, já que há processos anteriores em que eles foram beneficiados”, diz a advogada Claudia Hakim, de São Paulo, especialista em Direito de Educação.
Para Milene, mãe de Enzo, os desafios de uma criança com déficit de atenção não estão tão distantes dos de qualquer outra. “Como mãe, você tem as mesmas preocupações a médio e longo prazo. Com o vestibular, a aceitação do grupo, os relacionamentos, a independência financeira… Mas se já é difícil para os outros, imagina para o meu filho?”, questiona. Algo que todo pai e mãe deveria se perguntar antes de apontar o dedo, não?
Escrito por Por Aline Melo e Malu Echeverria
Fonte: Revista Crescer